A trajetória de um super-herói
nos quadrinhos normalmente é dividida em fases, permanência de um roteirista ou
alguma saga marcante, neste caso específico irei falar de uma fase do Demolidor
pós “Queda de Murdock”, o período em que Ann Nocenti assumiu o roteiro das
histórias do Homem sem Medo, o que não foi uma tarefa das mais fáceis, Miller e
Mazzuchelli haviam acabado de produzir a história definitiva na carreira do
Demolidor, imagina o desafio que esta jovem editora teve em suas mãos. Uma
tremenda de uma batata quente!
Ela assume a revista a partir da
edição 236 de Daredevil e lá ficou até o número 292, totalizando 56 edições,
aproximadamente 4 anos e meio. Um bom tempo para se trabalhar um personagem,
concordam?
E como ela se saiu? Qual o legado
que deixou na trajetória do protetor da Cozinha do Inferno? Sua passagem pelo
personagem se analisada hoje ainda é relevante ou atual? Então... vamos lá.
Ann Nocenti começa exatamente do
mesmo ponto onde Miller terminara sua obra, um Matt Murdock recomeçando do zero,
morando num apê bem modesto ao lado de Karen Page e sem sua licença para
advogar. Mas apesar disso, Murdock cria uma espécie de “ONG” onde presta
consultoria jurídica gratuita para os moradores da Cozinha, e um dos seus
primeiros casos e que se tornaria o fio condutor para suas primeiras histórias
seria o caso das Indústrias Kelco (umas das indústrias de fachada de Wilson
Fisk) que era acusada de contaminar o meio ambiente com resíduos tóxicos que
causaram cegueira num garoto morador da Cozinha do Inferno. Na década de 80 já
se mostrava uma história em que se atentava para a questão ecológica e de uma
economia sustentável, ao mesmo tempo em que a as grandes corporações usavam sua
influência para corromper o sistema jurídico! Isso soa atual? Sim e ponto para
Ann Nocenti! No decorrer das histórias podemos ver Matt Murdock se frustrando
com o sistema jurídico que ele tanto ama, abordagem interessante para o
advogado cego.
Bom, eu citei que a indústria
Kelco era uma das empresas de fachada de Wilson Fisk, né? Bom, como era de se
esperar nesse início de trabalho com o Demolidor, Ann foca num Fisk ainda
obcecado em tentar destruir a vida de Murdock, e se tirar sua licença para
advogar, seus bens e afastá-lo de seu melhor amigo não foi o bastante para
derrotar o Homem sem Medo, Fisk decide tentar uma nova abordagem: atacá-lo pelo
coração, ou seja usar uma fêmea fatalle como isca! E eis que surge uma nova
vilã na galeria do Homem sem Medo: Mary Tyffoid! Mary é uma mulher que sofre de
graves problemas mentais, assumindo 2 personalidades: como a tímida e meiga
Mary Walker (que irá seduzir Matt Murdock) e como Tyfoid uma assassina e
mercenária (uma segunda Elektra????). Ela possui
poderes psiônicos,incluindo telecinésia leve e forte pirocinese, e com esta
personalidade irá enfrentar o demolidor nas ruas da Cozinha. Ao descobrir sobre
os “talentos” de Mary, Wilson Fisk a recruta para que possa destruir Murdock.
E aqui ocorre um paradoxo interessante: com Tyfoid ela é amante de Fisk e como
Mary amante de Matt.
Paralelamente a esses
acontecimentos o Demolidor vai conquistando alguns desafetos ao patrulhar as
ruas da Cozinha do Inferno, e Ann Nocenti cria uma galeria de vilões de
primeira, segunda e terceira categoria: entre eles o Guerrilheiro e Bullet
(personagens muito interessantes), o Balaço (um líder de uma gangue de
vândalos) e os dois porra loucas do bairro.Com exceção de Bullet ( que era um
agente do Governo que fazia todo o tipo de trabalho sujo) o Demolidor havia
derrotado e humilhado todos eles, que se encontravam sedentos por uma vingança.
Tyfoid então arquiteta seu plano
para destruir o Demolidor, ela recruta todos esses desafetos e orquestra uma
ofensiva ao Demolidor, um por um eles atacam o Demolidor sem descanso, que não
tem a menor chance contra esse pequeno exército sedento por sangue. (a história
publicada em Daredevil 260 é pancadaria do início ao fim!). Derrotado,
humilhado ele é deixado quase morto na sarjeta, onde é levado a um hospital, e
lá Karen Page toma conhecimento da traição de Matt ao ver que Mary lá se
encontrava velando pelo Herói. Novamente Murdock perde o pouco que ele tinha, o
amor de sua mulher e a esperança de dias melhores.
Eu considero essa fase uma
“segunda Queda de Murdock”, não quero comparar aqui o trabalho dela com o de Miller,
mas pode ser sim considerada uma extensão do trabalho de Fisk, aqui ele tenta
terminar o que começou na “Queda”. E momentaneamente ele consegue, após isso
Murdock abandona a cidade e começa a vagar sem rumo pelo país. Aqui eu também
gosto de considerar como a primeira “fase” da trajetória de Ann no Demolidor. E
também a melhor, pois a partir do momento que Matt se torna um ser errante, Ann
introduz vários elementos não muito comuns na carreira do Herói. Mefisto o
persegue, aproveitando a forte fé católica que Matt possui, para fazer com que
ele possa sofrer com profundas crises de remorso (afinal ele cometera
adultério) e a todo instante o ser das Trevas aproveita a oportunidade para
questionar a fé católica de um homem que se veste de Demônio !?!
Outra coisa incomum, foi a
mudança de cenário, da grande cidade, Matt agora circula por pequenas cidades
do interior e até cenários rurais, como uma fazenda. E continuando esse quadro,
digamos diferente, Ann adiciona 2 personagens nada convencionais no mundo do
Demolidor, 2 inumanos. Pra completar o grupo, uma feminista reacionária, uma
androide subserviente ao sexo masculino se juntam à nova trupe do Herói cego; e
confrontos com Ultron e com o Coração Negro (filho de Mefisto, criação de Nocenti!)
completam esse caldeirão minimamente bizarro na trajetória do Demolidor, por
isso considero essa como uma segunda fase, e como disse anteriormente inferior
à suas primeiras histórias.
Partindo agora para a parte
estética das histórias, aqui encontramos uma parceria memorável e longa com o
ilustrador John Romita Junior, onde ele traçou seu próprio estilo, se
diferenciando e muito do seu pai, e esse estilo ele mantém até hoje,
despertando amor ou ódio nos leitores. Eu faço parte do primeiro time, sou
muito fã da sua arte. Romita mostra uma Cozinha com muitos becos sujos e
escuros, suas cenas de ação são sempre grandiosas, várias vezes com uma página
inteira ou até dupla ao ilustrar um combate. Gostaria muito mesmo de rever
essas histórias num encadernado de luxo.
Passados todos esses anos, e
analisando o trabalho como um todo, minha opinião é que o saldo foi positivo,
não chega a ser um trabalho extraordinário (algo assim só com o arco Diabo da
Guarda, vários anos depois), mas muito agradável de se ler e principalmente por
contar com a arte de Romita. Uma coisa interessante: Ann criou bons vilões para
o Demolidor,mas que não foram usados como deveriam pelos roteiristas
posteriores: Tyfoid ainda é usada alguma vezes, Bullet ( na minha opinião um
vilão muito, muito legal) caiu num ostracismo total e o Guerrilheiro só vi
aparecer em algumas passagens pelo Justiceiro, uma pena.
vou ler
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